
Desde o início de nossa caminhada no rumo da organização da Igreja Anglicana Tradicional do Brasil temos sido agredidos por alguns representantes da Igreja Anglicana "estabelecida", que se diz inclusiva mas que de fato exclui uma considerável parcela de irmãos anglicanos.
É verdade que após o episódio de Recife e do revés de ter que tolerar a interferência de um arcebispo exótico em terras tupiniquins, tais agressões esmaeceram um tanto, mas vez ou outra alguém se lembra de nos atacar seja diretamente ou por meio de insinuações. A última delas que merece comentário foi a publicação no site da entidade pseudo-ecumênica CONIC de uma carta do primaz da igreja “estabelecida” pela qual demonstra toda a sua incapacidade de agir de acordo com as próprias recomendações de Lambeth com relação aos irmãos continuantes.
A Igreja Anglicana Tradicional do Brasil enquanto corporação preparou um documento de repúdio àquela posição, mas até o momento ainda não o trouxe a público, e talvez nem o faça. Aqui, porém, estabeleço minha trincheira pessoal sobre o assunto.
Entretanto não vou argumentar contra o texto da carta publicada pelo CONIC, pois pode ser que isso seja feito de forma corporativa. Mas vou apresentar a resposta que dei a um membro leigo da igreja "estabelecida", anos atrás, pois o mesmo desferia na oportunidade todo tipo de agressão contra nós.
Verão que o tempo passou, mas o assunto está plenamente contextualizado. Vou omitir propositalmente o nome do destinatário da minha nota. Leiam-na:
Sua leitura do Movimento Anglicano Continuante é no mínimo ingênua. Provavelmente você não leva em conta uma série de fatores que têm contribuído para alimentar o fenômeno. Primeiramente você se esquece de que a Igreja Anglicana, seja Comunhão de Cantuário ou não, é cismática em relação a Igreja Romana. É certo que alguns anglicanos inconformados defendem o contrário; parecem que têm vergonha de admitir que a emancipação da Igreja da Inglaterra no século XVI teve caráter eminentemente político e pessoal, para atender ao desejo humano de Henrique VIII. Há os que defendem que na Inglaterra já havia uma igreja cristã diferente da Igreja de Roma ao tempo de Agostinho, mas o fato é que ao tempo de Henrique VIII a Igreja da Inglaterra já era uma Igreja dependente da Sé Romana. Portanto não há como se esquivar do fato do cisma.
Um outro aspecto bastante discutido e sempre relevado nesta análise é o fato de que a dita Comunhão Anglicana tem experimentado ao longo das últimas décadas grave crise de identidade das diversas correntes de pensamento teológico que a onstituem.Posicionamentos ao redor dos temas da ordenação feminina e mais atualmente da ordenação de pessoas de orientação homossexual declarada tem dilacerado esta comunhão precária pela sua própria natureza.
O que é Comunhão Anglicana? Talvez você pense que esta "comunhão" tenha sempre existido e seja a instituição que dá legitimidade a qualquer denominação. O Rev. Carlos Eduardo B.
Calvani(*) em um elucidativo ensaio que recebeu o sugestivo título: "O Mito da Comunhão Anglicana - entre a mediocridade e a inclusividade" apresentado na abertura do Simpósio de Teologia Anglicana promovido pelo CEA em Londrina, em julho de 2004, ainda que não tivesse o objetivo de defender as teses continuantes, revela a fragilidade desta comunhão na qual, muitos como você, atribuem demasiada importância. Vejamos o que encontramos no ensaio do Rev. Calvani:
"Até o século XIX não existia o que chamamos hoje “Comunhão Anglicana” enquanto conjunto de estruturas internacionais. Isso surgiu a partir de controvérsias ligadas à política eclesiástica. Até o final do século XIX o que havia era a troca de correspondências e informações entre bispos e lideranças eclesiásticas das igrejas nascidas dos esforços missionários coloniais britânicos e de iniciativas missionárias americanas. Não havia uma estrutura internacional que unisse essas dioceses. O essencial e suficiente era manter certas afinidades litúrgicas derivadas da herança da reforma inglesa."
Muitas pessoas se referem à Comunhão Anglicana como se fosse um órgão burocrático com um poder centralizador e normalizador capaz de conferir legitimidade a quem lhe prestar reverência. Pensam que só há vida e inteligência dentro dela, e que automaticamente aquilo que não lhe está circunscrito é falsificado, ou ao menos de segunda linha. Algo como a antiga e famosa frase da Igreja Romana: "fora dela não há salvação"! Esta tese, defendida ora explicitamente ora subliminarmente por diversas lideranças eclesiásticas (incluindo-se sacerdotes e bispos) chega ao povo com tal intensidade que ganha foros de verdade e tem se transformado numa forma cruel de discriminação e conspira contra a propalada inclusividade. Vou recorrer novamente ao texto do Rev. Calvani já citado:
"Acredito que não podemos confundir o sentido teológico da palavra “Comunhão” com seu uso eclesiástico. Talvez tenhamos que usar essa expressão sempre entre aspas ou com um traço, como sugere Derrida porque isso que chamamos “Comunhão Anglicana” é um mito, e estou utilizando a expressão mito no sentido antropológico do termo. Não como algo irreal, falso ou uma mentira, mas como explicação simbólica de certas relações sociais. Como todo mito, tem um caráter ambíguo: contém elementos utópicos positivos e “explica” os interesses das pessoas envolvidas na sustentação do mito. Seu lado negativo transparece quando o poder do mito é cooptado por pessoas que insistem em transformá-lo em experiência histórica e criar forçosamente uma comunhão que melhor se expressa no nível simbólico."
"O que estou querendo dizer é que a palavra “Comunhão Anglicana” expressa muito mais um propósito e uma disposição assumidos por diversos cristãos de orar uns pelos outros, apoiar-se mutuamente, trocar experiências e crescerem juntos respeitando suas diferenças. Mas daí
a aplicar o conceito teológico de comunhão a relacionamentos institucionais é um arriscado contrabando teológico, ao menos para a minha cabeça."
Para a minha também, Rev. Calvani. Mas não tem havido disposição da Igreja para colocar as coisas como elas realmente são. É mais conveniente para os interesses pessoais e projetos corporativos estabelecer uma diferença entre comungantes de Cantuária e "reles continuantes", aqueles que não possuem "pedigree". Haja vista a recente carta do Bispo Primaz esclarecendo a opinião pública religiosa que tais e quais Igrejas "não têm nada a ver conosco".
Será que o Bispo Primaz não tem outras preocupações maiores do que esta? Ai está o exemplo prático do "contrabando teológico".
Uma coisa que parece estar escandalizando uma série de anglicanos ingênuos é o fenômeno da divisão celular que tanto atormenta o alto clero. O surgimento de novos grupos anglicanos, carismáticos, evangelicais, reformados e etc. não é um fenômeno nem novo nem exclusivo da Igreja Anglicana. Apenas para ficar com os exemplos pós Reforma, sem entrar na grande divisão cismática entre Ocidente e Oriente nos primeiros séculos da vida da Igreja de Cristo, vemos surgir dia após dia grupos presbiterianos, batistas, congregacionais, luteranos, etc. E por que não haveria de ocorrer com a Igreja Anglicana? Também a Igreja de Roma sofre divisões. Mas por causa da estrutura clerical os grupos que surgem na Igreja Romana para representar por exemplo os carismáticos e os renovados acabam por permanecer ligados à Sé Romana. Creio que além de melhor acomodar o "modus vivendi" de cada corrente, estas divisões podem ser fruto da incapacidade da liderança da Igreja em conseguir harmonizar e conciliar cada uma destas tendências. Imaginar que tais divisões atendem puramente a vaidade de um ou de outro clérigo é ingenuidade, pois muitos destes novos grupos são constituídos por milhares de crentes leigos.
Seria conveniente um estudo de como estão nas diversas dioceses sendo relegadas lideranças importantes apenas porque não estão alinhadas com o pensamento dominante. Uma revisão honesta dos critérios para formação de clérigos e recepção dos que se ajuntam à Igreja seria salutar para evitar a saída de muitos valores. Há ainda muitos pastores (ou padres) arrogantes, que supõe ser o supra sumo da inteligência, algo assim como um semi-deus, a quem ninguém pode contrapor suas idéias sem que sejam chamados de hereges. Todas estas coisas estão contribuindo para esta crise de divisão na Igreja. Alguns, antes de buscar as causas nos que saem deveriam refletir sobre sua conduta eclesiástica.
A sua expressão "grife anglicana" é risível. Você trata o termo como se fosse a marca de uma pasta de dente, com patente registrada. É também uma expressão do "contrabando teológico". É o que querem que você pense.
A inclusividade e a comunhão é algo muito maior do que a relação de nomes de Igrejas. Comunhão não se dá ao nivel das instituições. Dá-se ao nivel dos corações fraternos. Para finalizar vou novamente recorrer ao texto do Rev. Calvani:
"O amor de Deus pouco tem a ver com nossas querelas institucionais. Por um lado, o fortalecimento institucional é uma promessa de segurança; por outro lado é um risco perigoso. É pena que alguns considerem os "laços de afeição" apenas uma metáfora poética e não conseguem compreender nela o significado da palavra koinonia que nos convida à comunhão inclusiva com o Deus que nunca nos excluiu das dádivas de seu infinito amor."
fraternalmente, com afeição,
Rui Costa Barbosa
(*) Coordenador do Centro de Estudos Anglicanos (CEA) da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil e Professor de Teologia na UniFil.
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